A penhora de bens pertencentes a empresa individual de responsabilidade limitada (Eireli) por dívidas do empresário que a constituiu depende da necessária instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Com essa conclusão, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial e reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que havia admitido, de pronto, a penhora feita contra a Eireli de um empresário, por dívidas com um banco.
O empresário constou como avalista em duas cédulas de crédito bancários emitidas em favor de uma empresa de arquitetura e urbanismo no valor total de R$ 5,2 milhões. Com o atraso no pagamento de uma das parcelas, houve o vencimento antecipado de toda a dívida.
O banco não pôde penhorar os bens da empresa de arquitetura ou das outras empresas constituídas pelos avalistas — todos da mesma família — porque elas se encontravam no chamado stay period, de suspensão das execuções conferida pela recuperação judicial e previsto no artigo 6º, parágrafo 4º da Lei 11.101/2005.
Por isso, o banco se voltou à Eireli de um desses avalistas. O juízo de primeiro grau exigiu a inauguração de um incidente próprio de desconsideração da personalidade jurídica, mas o TJ-SP entendeu que já caberia, desde logo, a penhora contra os bens da empresa individual.
Relatora na 3ª Turma do STJ, a ministra Nancy Andrighi explicou que um dos efeitos da criação de uma Eireli é a separação do patrimônio da pessoa jurídica daquele pertencente à pessoa natural do empresário. Logo, as responsabilidades também são distintas.
Ou seja, os bens pessoais do empresário não respondem por dívidas assumidas pela Eireli, e vice-versa. Se, no entanto, os credores do empresário forem impedidos de satisfazer seus créditos em razão de blindagem patrimonial, a personalidade jurídica da Eireli pode ser desconsiderada.
Para isso, é imprescindível a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
“A observância de tal procedimento garante o exercício prévio do contraditório e da ampla defesa por parte da pessoa jurídica ou da pessoa natural que lhe constituiu, possibilitando a plena demonstração da presença, ou da ausência, dos pressupostos específicos para a superação momentânea da autonomia patrimonial”, explicou a relatora.
A decisão foi unânime. Votaram com a ministra Nancy Andrighi os ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.
Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.874.256 – SP (2020/0027587-2)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : AYZ ASSESSORIA TÉCNICA – EIRELI
RECORRIDO : BANCO ABC BRASIL S.A
EMENTA:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULOS EXTRAJUDICIAIS. CÉDULAS DE CRÉDITO BANCÁRIO. PENHORA DE BENS DE EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – EIRELI QUE NÃO É PARTE
NA EXECUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE FRAUDE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE. NECESSIDADE.Ação de execução de títulos extrajudiciais proposta em 31/03/2016. Recurso especial interposto em 16/07/2019 e concluso ao Gabinete em 06/05/2020. Julgamento: Aplicação do CPC/2015.
O propósito recursal consiste em dizer, para além da negativa de prestação jurisdicional, acerca da possibilidade de penhora de bens pertencentes a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), por dívidas do empresário que a constituiu, independentemente da instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Não ocorre violação do art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte.
A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Lei 12.441/2011, com vistas a sanar antiga lacuna legal quanto à limitação do risco patrimonial no exercício individual da empresa.
O fundamento e efeito último da constituição da EIRELI é a separação do patrimônio – e naturalmente, da responsabilidade – entre a pessoa jurídica e a pessoa natural que lhe titulariza. Uma vez constituída a EIRELI, por meio do registro de seu ato constitutivo na Junta Comercial, não mais entrelaçadas estarão as esferas patrimoniais da empresa e do empresário, como explicitamente prescreve o art. 980-A, § 7º, do CC/02.
Na hipótese de indícios de abuso da autonomia patrimonial, a personalidade Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 1 de 7 Superior Tribunal de Justiça jurídica da EIRELI pode ser desconsiderada, de modo a atingir os bens particulares do empresário individual para a satisfação de dívidas contraídas pela pessoa jurídica. Também se admite a desconsideração da personalidade jurídica de maneira inversa, quando se constatar a utilização abusiva, pelo empresário individual, da blindagem patrimonial conferida à EIRELI, como forma de ocultar seus bens pessoais.
Em uma ou em outra situação, todavia, é imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir a inclusão do novo sujeito no processo – o empresário individual ou a EIRELI –, atingido em seu patrimônio em decorrência da medida.
Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O exequente alega que disponibilizou à empresa GABINETE duas linhas de crédito, nos valores de R$ 5.000.000,00 e R$ 200.000,00, tendo formalizado essas operações mediante a emissão de duas cédulas de crédito bancário (CCB nº 3652615 e 773603715), nas quais constou a empresa GABINETE como devedora principal e, como avalistas, as pessoas físicas de ANIBAL, MARIA IZABEL e DANIEL.
Aduz que, ante o inadimplemento de uma das parcelas, houve o vencimento antecipado de toda a dívida, razão pela qual ajuizou a presente Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 3 de 7 Superior Tribunal de Justiça execução em 2016, visando ao pagamento da quantia de $ 2.557.217,16.
No curso do processo, restaram infrutíferas as tentativas de penhora de bens dos executados, obretudo ante o fato de os ativos pertencentes à executada GABINETE e a outras empresas constituídas pela família KNIJNIK estarem sob a quarentena de que trata o art. 6º, § 4º, da 11.101/2005.
Daí porque pleiteou o Banco exequente, ora recorrido, a penhora de bens pertencentes à empresa ora recorrente, AYZ ASSESSORIA TÉCNICA – EIRELI, argumentando que ela foi constituída em 28/06/2016 pelo executado ANIBAL, também para o exercício de atividades relacionadas à prestação de serviços de
engenharia e arquitetura.
Decisão interlocutória: indeferiu o pedido de penhora de valores pertencentes à recorrente, concedendo ao Banco recorrido o prazo de 10 dias para a inauguração de um incidente próprio de desconsideração da personalidade jurídica.
Acórdão: deu provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrido, para autorizar, desde logo, a penhora de bens da ora recorrente, nos termos da seguinte ementa (e-STJ fl. 190):
“PENHORA – Devedor que é titular de empresa individual de responsabilidade limitada – Pedido de penhora das contas da empresa para pagamento de dívida do titular – Indeferimento – Personalidades jurídicas que se confundem, sendo que o patrimônio responde indistintamente por dívidas de ambos – Inexistência de bens penhoráveis e inadimplemento de obrigações que configura abuso de personalidade jurídica – Possibilidade de ser deferida penhora da conta da empresa individual, por dívida constituída por seu titular – Penhora deferida – Recurso provido para tal fim”.
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram rejeitados, por maioria.
Recurso especial: alega violação dos arts. 133, 138, 795, § 4º, e 1.022, II, do CPC/15; 44, VI, e 980-A do CC/02. Além de negativa de prestação Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 4 de 7 Superior Tribunal de Justiça jurisdicional, sustenta que: (i) a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI constitui uma sociedade unipessoal, de modo que sua personalidade e patrimônio são inconfundíveis com a pessoa do empresário que a constituiu; (ii) tratando-se de pessoa jurídica com patrimônio autônomo, é indispensável a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, antes de eventual constrição de bens.
Juízo de admissibilidade: o TJ/SP negou seguimento ao recurso, o que ensejou a interposição de agravo em recurso especial, que fora provido para melhor exame da matéria em debate (e-STJ fl. 294).
Petição: intimada a se manifestar, a recorrente informou que persiste o seu interesse no julgamento do recurso especial, esclarecendo que foi incluída no polo passivo da execução sem que se processasse o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que culminou por ser arquivado pelo juiz do 1º grau de jurisdição, sem resolução do mérito (e-STJ fls. 303/305).
É o relatório.
Ação de execução de títulos extrajudiciais proposta em 31/03/2016. Recurso especial interposto em 16/07/2019 e concluso ao Gabinete em 06/05/2020. Julgamento: Aplicação do CPC/2015.
O propósito recursal consiste em dizer, para além da negativa de prestação jurisdicional, acerca da possibilidade de penhora de bens pertencentes a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), por dívidas do empresário que a constituiu, independentemente da instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Não ocorre violação do art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte.
A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Lei 12.441/2011, com vistas a sanar antiga lacuna legal quanto à limitação do risco patrimonial no exercício individual da empresa.
O fundamento e efeito último da constituição da EIRELI é a separação do patrimônio – e naturalmente, da responsabilidade – entre a pessoa jurídica e a pessoa natural que lhe titulariza. Uma vez constituída a EIRELI, por meio do registro de seu ato constitutivo na Junta Comercial, não mais entrelaçadas estarão as esferas patrimoniais da empresa e do empresário, como explicitamente prescreve o art. 980-A, § 7º, do CC/02.
Na hipótese de indícios de abuso da autonomia patrimonial, a personalidade jurídica da EIRELI pode ser desconsiderada, de modo a atingir os bens particulares Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 6 de 7 Superior Tribunal de Justiça do empresário individual para a satisfação de dívidas contraídas pela pessoa jurídica. Também se admite a desconsideração da personalidade jurídica de maneira inversa, quando se constatar a utilização abusiva, pelo empresário individual, da blindagem patrimonial conferida à EIRELI, como forma de ocultar seus bens pessoais.
Em uma ou em outra situação, todavia, é imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir a inclusão do novo sujeito no processo – o empresário individual ou a EIRELI –, atingido em seu patrimônio em decorrência da medida.
Recurso especial conhecido e provido.
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
O propósito recursal consiste em dizer, para além da negativa de prestação jurisdicional, acerca da possibilidade de penhora de bens pertencentes a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), por dívidas do empresário que a constituiu, independentemente da instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
I. DA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022, II, DO CPC/15.
É firme a jurisprudência do STJ no sentido de que não ocorre violação ao art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte.
A propósito, confira-se: AgInt nos EDcl no AREsp 1.094.857/SC, 3ª Turma, DJe de 02/02/2018 e AgInt no AREsp 1.089.677/AM, 4ª Turma, DJe de Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 8 de 7 Superior Tribunal de Justiça 16/02/2018.
No particular, verifica-se que o acórdão recorrido, independentemente do acerto da solução alcançada, decidiu de maneira fundamentada e expressa acerca da possibilidade de penhora de bens da recorrente e da desnecessidade de instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, os embargos de declaração opostos pela parte com vistas ao revolvimento do tema de fato não comportavam acolhimento, não havendo que se falar em violação do art. 1.022 do CPC/2015 pela rejeição do recurso.
II. DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA – EIRELI.
O Tribunal de origem entendeu possível a penhora de bens pertencentes à ora recorrente, AYZ ASSESSORIA TÉCNICA – EIRELI, na execução movida contra seu constituinte, ANIBAL KNIJNIK, ao fundamento de que a personalidade jurídica do empresário individual se confunde com a da empresa.
Nos termos do acórdão recorrido, “a firma individual é ficção jurídica, com a única finalidade de habilitar a pessoa física a praticar atos de comércio, concedendo-lhe tratamento especial de natureza fiscal”, de modo que “para fins de cumprimento de obrigações, seus respectivos patrimônios também se confundem, respondendo indistinta pelas dívidas de ambos” (e-STJ fl. 193).
A respeito desse tema, constata-se, no repertório da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a existência de precedentes que, na mesma linha do acórdão recorrido, asseveraram que “a empresa individual é mera ficção jurídica que permite à pessoa natural atuar no mercado com vantagens próprias da pessoa jurídica, sem que a titularidade implique distinção patrimonial entre o Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 9 de 7 Superior Tribunal de Justiça empresário individual e a pessoa natural titular da firma individual” (REsp 1.355.000/SP, 4ª Turma, DJe 10/11/2016).
No mesmo sentido, também podem ser citados os seguintes julgados (dois deles, inclusive, sob a minha relatoria): AgInt no AREsp 1.669.328/PR, 2ª Turma, DJe 01/10/2020; REsp 1.682.989/RS, 2ª Turma, DJe 09/10/2017; AgInt no AREsp 925.712/MG, 3ª Turma, DJe 01/06/2017; AgRg no AREsp 665.751/SP, 3ª Turma, DJe 21/06/2016; REsp 487.995/AP, 3ª Turma, DJ 22/05/2006; REsp 594.832/RO, 3ª Turma, DJ 01/08/2005; REsp 227.393/PR, 1ª Turma, DJ 29/11/1999; REsp 102.539/SP, 1ª Turma, DJ 16/12/1996.
Não obstante, verifica-se que esse entendimento, apesar de reproduzido em alguns julgados da última década, foi, a rigor, firmado antes da vigência da Lei 12.441/2011, que modificou o Código Civil de 2002 para prever, dentre o rol das pessoas jurídicas, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, constituída por uma única pessoa natural, titular da totalidade do capital social. 10. Na ocasião, o art. 44 do CC/2002 passou a ter a seguinte redação: “Art. 4 4. São pessoas jurídicas de direito privado:
I – as associações;
II – as sociedades;
III – as fundações;
IV – as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
V – os partidos políticos; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (grifou-se)
Ainda, foi acrescido ao Código Civil o art. 980-A, que assim prescreve: “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 10 de 7 Superior Tribunal de Justiça
§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “EIRELI” após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.
§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
§ 4º ( VETADO) .
§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.
§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
§ 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude” (grifou-se).
Consoante destaca Marlon TOMAZETTE, o objetivo da Lei 12.441/2011 foi o de sanar antiga lacuna no ordenamento jurídico pátrio quanto à limitação do risco patrimonial no exercício individual da empresa. Como afirma, essa omissão legal era injustificável, e culminava em “uma avalanche de sociedades fictícias, nas quais um sócio era apenas um nome para permitir a limitação dos riscos” e não efetivamente um participante da empresa: “ora, se a lei, por autorizar limites à responsabilidade, admite a existência de um interesse social na limitação do risco, esse mesmo interesse se manifesta nos empreendimentos individuais e explica o desejo de uma solução adequada para delimitar o risco e a responsabilidade comerciante”.
Destarte, a solução adotada no país foi a criação de um novo tipo de pessoa jurídica com vistas à limitação dos riscos no exercício individual da empresa, conforme discorre o doutrinador:
Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 11 de 7 Superior Tribunal de Justiça “Após várias tentativas, no Brasil, optou-se pela introdução no Código Civil da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011”, que entrará em vigor no dia 09 de janeiro de 2012, por força do artigo 8º, §1º da Lei Complementar nº 95/98. Inicialmente deve-se ressaltar a importância dessa medida que segue uma tendência mundial e pode servir de grande incentivo para a economia do país, além de eliminar ou ao menos diminuir a existência de expedientes fictícios que vinham sendo usados para os mesmos objetivos. É digna de aplauso a iniciativa do legislador.
[…]
A EIRELI no Brasil representa um instrumento legítimo de limitação dos riscos do exercício individual da empresa, por meio da criação de uma pessoa jurídica. Ao se exercer a atividade empresarial por meio de uma pessoa jurídica, cria-se um centro autônomo de interesses em relação às pessoas que lhe deram origem, de modo que a estas não são imputados as condutas, os direitos e os deveres da pessoa jurídica. Reitere-se, ‘com o nascimento dela, surge um novo centro de referência de interesses e relações jurídicas; se tem um sujeito jurídico a mais, o qual tem capacidade de direito, capacidade de querer e agir, vontade
e responsabilidade patrimonial própria’. Em suma, a EIRELI no Brasil é uma pessoa jurídica criada como centro autônomo de direitos e obrigações para o exercício individual da atividade empresarial. Trata-se de uma opção para quem quer exercer sozinho (Empresa Individual) a atividade empresarial e limitar a sua
responsabilidade (Responsabilidade Limitada) pelo exercício da atividade” (A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) no Brasil. In Revista de Dir. Empresarial. Belo Horizonte, ano 10, n. 3, set./dez.2013, p. 99-132, grifos acrescentados).
À toda evidência, assim, o fundamento e efeito último da constituição da EIRELI é a separação do patrimônio – e, naturalmente da responsabilidade – entre a pessoa jurídica e a pessoa natural que lhe titulariza. Dessa forma, uma vez constituída a EIRELI, por meio do registro de seu ato constitutivo na Junta Comercial, não mais entrelaçado estará o patrimônio da empresa e do empresário, como, aliás, explicitamente prescreve o parágrafo 7º do art. 980-A do CC/02: “somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude”. Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 12 de 7 Superior Tribunal de Justiça
Nesse diapasão, a aplicação do entendimento outrora firmado na jurisprudência desta Corte, no tocante à ausência de distinção patrimonial entre o empresário individual e a pessoa natural titular da firma individual, deve-se restringir à hipótese em que a pessoa natural realiza atividades empresariais por conta própria, assumindo, sozinha, a titularidade e o risco do negócio, mesmo que, para fins fiscais, se cadastre no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica).
Diferentemente, se houver a constituição – e o necessário registro na Junta Comercial – da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), desassociados estarão o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio da pessoa natural, respondendo cada uma, separadamente, pelos atos civis que praticar, ressalvada a hipótese de fraude.
III. DA OBRIGATÓRIA INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
Dessa forma, em regra, na hipótese de constituição da empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI, os bens particulares do empresário individual não respondem pelas dívidas assumidas pela pessoa jurídica, nem vice-versa.
Se, todavia, os credores da EIRELI forem impedidos de satisfazerem seus créditos em razão de abuso da autonomia patrimonial, a personalidade jurídica pode ser desconsiderada, de modo a atingir os bens particulares do empresário individual.
Semelhantemente, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de maneira inversa, quando se constatar a utilização abusiva, pelo empresário individual, da blindagem patrimonial conferida à EIRELI, como forma de
ocultar seus bens pessoais, transferindo-os para a pessoa jurídica e protegendo-os Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 13 de 7 Superior Tribunal de Justiça
do alcance de seus credores.
Não obstante, seja em uma ou em outra situação, é imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir a inclusão do novo sujeito no processo – o empresário individual ou a EIRELI –, atingido em seu patrimônio em decorrência da medida.
A observância de tal procedimento garante o exercício prévio do contraditório e da ampla defesa por parte da pessoa jurídica ou da pessoa natural que lhe constituiu, possibilitando a plena demonstração da presença, ou da ausência, dos pressupostos específicos para a superação momentânea da autonomia patrimonial.
De fato, “não pode haver desconsideração sem que seja observado o incidente disciplinado no CPC/2015 (…), ressalvada a desconsideração requerida já na petição inicial”. Destarte, “a desconsideração não se resume a uma simples questão, tratando-se efetivamente de uma demanda incidental dirigida ao terceiro que se pretende atingir pela medida”; razão pela qual “nos termos do artigo 135, o potencial atingido pela medida será ‘citado’ (e não simplesmente intimado) para responder ao pleito veiculado no incidente de desconsideração” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Teoria geral do processo: comentários ao CPC 2015, 2ª ed. – São Paulo: Método, 2018, p. 569-571).
Assim, em suma, considerando que, na hipótese dos autos, o TJ/SP autorizou a penhora de bens da empresa recorrente por dívidas contraídas individualmente por seu titular, sem que houvesse, contudo, a prévia instauração do procedimento de desconsideração da personalidade jurídica, impõe-se o acolhimento da irresignação recursal, para a reforma do acórdão recorrido. Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 14 de 7 Superior Tribunal de Justiça Forte nessas razões, CONHEÇO do recurso especial e DOU-LHE PROVIMENTO, para afastar a autorização de penhora imediata de bens pertencentes à recorrente, determinando que seja processado o incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica de AYZ ASSESSORIA TÉCNICA – EIRELI, na execução promovida contra seu titular, ANIBAL KNIJNIK.
O EXMO. SR. MINISTRO MOURA RIBEIRO:
Adotado o relatório lançado pela eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, passo a análise do recurso.
Em seu voto, a eminente Ministra Relatora deu provimento ao presente recurso por entender que deve ser afastada a autorização de penhora imediata de bens pertencentes a AYZ ASSESSORIA TÉCNICA – EIRELI (AYZ), por dívida contraída por seu titular ANIBAL KNIJNIK, na medida em que a desconsideração da personalidade jurídica deve obedecer o procedimento legalmente regulado pelo Código de Processo Civil em seus arts. 133 e seguintes, qual seja, a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Após mencionado voto, pedi vista para melhor pensar sobre o caso e assim como a Ministra Relatora, também entendo que a desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que permitida em casos como o presente, deve observar o procedimento previsto no diploma processual civil.
Sobre a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica de empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), os doutrinadores ALFREDO DE ASSIS GONÇALVES NETO e ERASMO VALLADÃO AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, em obra coordenada pelo professor MODESTO CARVALHOSA, ensinam que se o titular do capital, na condução dos negócios da empresa, desviar-se dos fins a que ela se propõe ou praticar alguma ilegalidade, não terá a limitação de sua responsabilidade pelas obrigações que assim forem contraídas. Também não o terá se não mantiver perfeita separação entre o seu patrimônio e o da empresa por ele criada – hipótese que conduz à desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC) (Tratado de Direito Empresarial – Empresa Documento: 2069442 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 19/08/2021 Página 17 de 7 Superior Tribunal de Justiça Individual de Responsabilidade Limita e Sociedade de Pessoas, v. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 67).
Além do mais, os mesmos doutrinadores registram q ue o Código de Processo Civil de 2015 regula o incidente de desconsideração da personalidade jurídica em seus arts. 133 a 137, estendendo esse tratamento à “desconsideração inversa da personalidade jurídica” (art. 133, § 2º) (idem. p. 113).
Este, inclusive, é o entendimento desta Corte, a saber:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE. NECESSIDADE. NULIDADE RECONHECIDA. SUCUMBÊNCIA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO.
Segundo o princípio da causalidade, os encargos sucumbenciais devem ser suportados pela parte que deu causa ao ajuizamento da ação.
No caso concreto, foi a parte recorrente que pleiteou a inclusão dos sócios no polo passivo da execução, sem instauração do devido incidente de desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica executada, e foi este pedido que deu causa ao ajuizamento dos presentes embargos à execução, razão pela qual a recorrente deve arcar com a verba honorária.
Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 1.710.393/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO,
QUARTA TURMA, j. 22/3/2021, DJe 13/4/2021) Diante do todo exposto, acompanho o bem lançado voto proferido pela eminente Ministra NANCY ANDRIGHI e também DOU PROVIMENTO ao recurso especial
para afastar a autorização de penhora imediata de bens pertencentes a AYZ e determinar o processamento do necessário incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.